A casa da infância. As portas do coração
Essa história me comove. Falar da casa que crescemos é falar de quem somos. Nosso porto seguro, e também nosso lugar com data de validade. Acima de tudo, para mim, é o lugar das boas memórias.
Tenho um amor imenso pela casa dos meus pais em Salvador. A casa que foi fruto da decisão mais importante que meu pai tomou. Da firmeza que surgiu ao perceber a oportunidade de construir uma casa para nós. É que meu avô tinha uma mania de amontoar filhos no mesmo trabalho, no mesmo terreno, e até na mesma casa. Imaginem a confusão. O passo foi: cada filho na sua casa. Porém, permanecemos um vizinho do outro. Minhas amigas achavam super engraçado eu morar colada com meus três tios. Eu achava o máximo. Achava normal também. Meus primos sempre foram meus melhores amigos. Até os que eram distantes por causa das brigas familiares, permaneceram guardados no coração. E assim, conseguimos preservar nossos laços. Que honra ter primos que são amigos. É um tipo de amizade especial.
Era uma rua muito engraçada, tinha fim, não tinha nada. Mas tinha tudo.
Adorava ouvir essa música que mudei para caber no meu título. A casa, de Vinicius de Moraes, cantada por Toquinho. Aliás, a primeira morada que tive em Salvador era onde o poeta havia morado. De frente para o mar. Ainda, todos juntos e misturados, passando algumas tardes em Itapuã. É, percebo que minha vida veio marcada em poesia. Mas vamos ao cenário da infância.
A rua deserta, a rua sem saída.
Havia apenas um terreno gigante e uma pequena casa da família que tomava conta do local. Além deles, somente areia branca das dunas que nos circundavam, e muita vegetação. Raros vizinhos.
Havia uma mini lagoa de águas escuras, destino cobiçado de nossas frequentes expedições pelo mato. E tinha o velho do saco, era uma missão achar a casa ele. Aquele mendigo me fazia pensar na vida. Só sei que eu amava sair livre pela mata. Eu me sentia muito forte e protegida, com meu facão abrindo caminhos e a turma aventureira. Como é bom lembrar. Meu irmão à frente, eu em seguida, sempre juntos na liderança dos nossos seguidores (que instagram que nada!). A mata era nosso lar.
O cajueiro
Gostava também de subir no cajueiro e ficar lá sem ver o tempo passar. Cuidava da árvore. Fazia de conta que aqueles buracos no tronco eram machucados e colocava uma massa que fazia com arenoso e água. Curandeira total. E lá em cima, muitas conversas com ela eram feitas. Como eu queria ter uma câmera para poder me assistir criança. A menina que falava com a árvore. Sei lá, é que a gente esquece fácil nossa essência. Era nesse local, que também fizemos algumas festas de São João. Entrávamos no mato para colher folhas de palmeira, madeira para fogueira, fazíamos bandeirinhas coloridas e as famosas comidas da época. Tudo pronto. Que delícia.
Foi nessa tranquilidade que cresci depois dos meus cinco anos. O nosso lar, esperado lar.
Das memórias mais vivas que tenho são os dias de limpeza pré mudança. Eu, minha mãe, a cadeirinha infantil de madeira e palha, minha vassourinha, uma garrafa de água mineral, bolacha água e sal e a liberdade. Tudo era tão simples, tão verdadeiro. Havia tanta paz. E a brisa. Ah! A brisa dessa casa. Vocês não podem imaginar. E a luminosidade, então? Ao fechar os olhos, posso sentir todas essas memórias vivas em mim.
Pausa emocionada. Respiro. Vamos.
Você realmente saiu de casa?
Nós crescemos e ela cresceu junto com a gente. Aumenta cozinha, fecha a varanda, faz escritório, transforma a sala, faz churrasqueira, um quarto a mais, depois mais outro. Minha avó acabou construindo uma casa para ela no nosso terreno. É, o espaço ficou grande demais para os meus pais. Sim, filho tem prazo de validade na casa da infância. E sim, o tempo passa. Eu fui a primeira a sair, em 2005. Posso dizer, sem dúvida, que essa foi a maior dor que senti.
Certa vez, numa terapia, mencionei a casa dos meus pais como se fosse ainda minha. Meu terapeuta logo sinalizou: sua casa ou casa dos seus pais? Sua pergunta foi com como uma flecha. Eu havia saído somente com o corpo, com a ilusão da independência da vida adulta. Havia muita coisa a ser vista.
2024, um marco na minha história.
Muito aconteceu desde que a casa nasceu. Quando estive lá, depois de cinco anos sem visitar o Brasil, eu estava com o discurso pronto de “é claro que precisa vender a casa”, mas era a boca falar e o coração apertar. Não que a decisão caiba a mim, mas sabe como é, família conversa. E agora, com meus pais sozinhos e os filhos do outro lado do oceano, existe a possibilidade de uma mudança. Talvez.
O fato é que estava lançada, mais uma vez, a pergunta: vocês querem mesmo vender a casa?
Desapegar só é possível depois que guardamos no coração.
O coração é sábio. E ele me guiou. Em silêncio, depois de não aguentar mais minha oscilação de opinião que variava de “gente, vende sim!” para “ah não! Não se pode vender. É a nossa casa!”, a nossa história. Logo criava um plano mirabolante para voltar para o Brasil. Mattia quase enlouquece comigo. Ele amou o Brasil, diga-se de passagem. A ideia era transformar a casa em duas. Meu nome é solução. Mas também, pé no chão. Com boa presença, voltamos para a realidade.
Eu sabia que até podia ouvir meus pais, seus sentimentos e planos, mas independente de tudo isso, eu precisava estar com meu coração em paz, seja lá qual for a decisão deles.
A casa fala
Foi então que decidi conversar com a casa. Na semana de ir embora, fui em cada canto. Fiz fotos, olhei, lembrei, revivi, respirei fundo e pedi a Deus. Tenho aprendido a entregar o que ainda não sei lidar.
E assim fui sendo guiada e a olhar com olhos de amor e despedida. A perceber que o apego só estava me trazendo angústia. Eu me despedi da casa dos meus pais. Abracei a parede como quem abraça uma pessoa, e chorei. Chorei de alegria e saudade. Como quem sabe que essa vida é passageira e que um dia, inevitavelmente, nós iremos e os lugares ficarão.
Eu me libertei, carreguei nossa casa todinha no meu coração.
Preenchi cada dúvida e ânsia com as memórias felizes e a gratidão de quem sabe o valor de tudo que viveu.
Fiz apenas um pedido
Que se um dia, pessoas novas habitassem aquela casa, que fosse gente como a gente. Que não olhassem que ela não atende os padrões e requisitos modernos. Que é grande demais, ou deserta demais. Pensei até em fazer um anúncio afetivo para uma possível oferta. Contando a vida que ela teve até então, como um ser vivo. Que se alegra, vive momentos difíceis, supera. A casa tem vida e parece que fala mesmo. Dizem que as paredes tem ouvidos, pelo visto olhos, boca e coração. Eu só pensava que era certo que alguém iria ver a casa com nossos olhos.
Os pequenos milagres
Meu pai recebeu a ligação de um grande amigo. Daqueles que toda a família ama estar junto. Clemente e Eulina. Um casal que faz parte da nossa história de maneira muito forte. E foi através deles, que Deus falou claramente comigo. Eles iriam voltar para Salvador, meus pais estavam fora. A solução imediata estava posta. Era o tempo que os dois precisavam para a transição.
Dias depois da mudança, depois de postar o livro do Padre Faus no Instagram, recebo uma foto de Eulina surpresa, pois viu que era o mesmo que estava na mesa de centro da sala. Disse que se sentiu convidada a ler, há tempos havia feito uma pausa, mas os convites surgem, né? Palavras dela. Assim, como eu, estava encantada com a leitura.
Esse livro, não sei como, veio repetido numa compra que fiz quando estava no Brasil. Deixei lá, para os meus pais, pois considero a melhor leitura para nossos dias. Se chama: A Conquista das Virtudes. Um resgate. E lá está ele, servindo de conexão entre nós e como um sinal para mim. Eu já estava satisfeita com essa resposta, mas eis que, a vida é muito generosa. Muito generosa. Peço que me permitam alongar esse, que seria um post sobre a casa de infância, e acrescentar o que considero uma mensagem Divina. Um diálogo humano transmitido por Deus.
Esse não é apenas uma texto sobre uma casa, é sobre a vida.
Entra em cena, Alice. A neta. A alma sensível.
Escrever é minha fonte de expressão. Gosto de contar com minhas palavras, só que elas não bastam para esse momento. Vou deixar as falas de Alice, que expressam tudo que eu senti ao abraçar a nossa casa, na minha despedida do Brasil e do meu apego. Que presente.
Narrado por sua avó, Eulina:
Ela desceu do carro, ainda na garagem, e falou:
– Vó me mostra o início da casa.
Então nos demos as mãos e ela começou:
– Vó essa casa tem cristais logo na entrada! Amoo pedras.
Ao entrar:
– Livros em cada canto, e essa estante? Minha vó!!
Voltou pra sala de TV e continuou:
– Mais pedras, uma coruja! Que coisa linda esse centro de madeira, com cristais e livros!
Falei para irmos conhecer lá em cima. Ela chegou logo no seu quarto, olhou pra mata e disse:
– Que paisagem linda!
Mostrei o ateliê de sua mãe, e ela falou:
– Encantada com essa essa casa, vovó. Aqui tem alma de artista!
Tudo que olhava, se encantava. Eu expliquei que Sueli é uma artista mesmo, muito sensível.
Ela olhou toda a casa e voltou pro seu quarto, dizendo:
– Minha vó, se você for morar aqui, eu me mudo pra cá. Divido esse ateliê em duas partes, uma será minha biblioteca. E a outra parte faço um ateliê pra treinar pintura em minhas telas. Fico entocada nesse quarto e ateliê, só saio daqui pra cumprir meus compromissos.
Depois olhamos lá fora, e ela disse:
– Essa casa tem uma boa energia. Se eu fosse você moraria aqui, combina certinha com sua energia. Desde pequena, que eu brincava com as suas pedras, gostava de energizar a casa com você.
– Ah minha vó, essa é uma boa casa pra você morar, e logo eu também me mudaria pra cá.
Eu perguntei, e seus pais?
– Eles vem me visitar a hora que quiser vó, mas eu mudaria pra cá, facilmente.
Uma casa com pedras, livros, plantas e uma paz incrível!
Olhou o quarto do casal e achou lindo a varanda, a paisagem das dunas. Disse que a casa é meio rústica, meio clássica e que amou tudo. Voltou para o seu quarto e foi terminar de ler.
Por último:
– Vó, vou descer essa escada correndo, toda criança faz isso numa casa com escada.
Eu disse para ela ficar à vontade, apenas ter cuidado pra não cair.
Diálogos, e sua importância.
Minha mãe havia me contado essa história, mas eu fiz questão de ouvir da própria Eulina as palavras de Alice. Cada frase, absolutamente, cada frase, é a cópia fiel da minha alma naquela casa. É o que sinto, o que vejo e o que almejo. É o que digo, e é o que eu disse ao me despedir. Ela ainda não sabe dessa minha despedida de meses atrás, nem que sua neta foi mensageira de Deus para mim. Vai saber agora, ao ler esse post.
Eu não tenho dúvida do poder da palavra, dos diálogos. Da comunicação com nosso mundo interno e externo. Por mais que eu confie plenamente que a casa fala, que Deus fala, é de uma potência imensa RECEBER tudo isso pelos olhos do outro. Ainda mais, quando esse outro, é uma doce lembrança de quem já fui. Dessa menina que alí viveu e partiu para outros destinos. Dessa menina que apenas chegou, e ouviu as paredes, a brisa.
Como é na vida, tudo é passageiro. Passamos por lugares, casas, pessoas. O que permanece é a essência. A história. Quem fomos e quem nos tornamos. Para seguir com a vida, habitando outros lugares, novas casas, novos corações.
Mensagem final
Que Deus abençoe a alma de artista de Alice. Que seus avós sigam trazendo muita vida e alegria para nossa casa. Ainda não sabemos o desfecho dessa história, mas ela já é pura magia. Em mim, nela, neles. Em nós.
Do mesmo jeito que fui tocada pelo poder da palavra falada, espero que a palavra escrita chegue até algum lugar do seu ser que precisa sair de casa ou voltar para casa. No fim das contas, essa história é sobre ocupar nosso lugar enquanto parte de uma família. Sobre honrar nossa origem e seguir nossos caminhos. Nunca é tarde para cuidar de mais uma parte que quer ser vista. Confie no que a vida traz.
Ao sair do círculo familiar, da casa dos pais, ou até do país, o que vai contar é o quanto já entramos na nossa casa interior. O quando sabemos morar em nós.
E deixa eu te contar um segredo, Alice: a casa Maior está a distância de um respiro e olhos bem fechados.
Habitar em si é o segredo para existir, seja lá onde for.
Bom caminho, menina Alice.
E bom exercício para quem se sentiu inspirada a olhar para si. Sugiro fotos antigas, caderno, lápis e uma boa música para voltar no tempo e descobrir alguns cômodos incômodos dentro de nós para abrir a porta do coração. Para viver melhor, para SER cada dia um pouco mais livre.